CAP. 1
ARRAIAL DE PARACATU
DO PRÍNCIPE/MG - 1817
Beija anda ansiosa de um lado para outro do vasto salão do palacete, enquanto o Ouvidor* Motta, sentado na escrivaninha, relê a carta que acabara de receber de D. João VI.
BEIJA: Você não pode fazer isso comigo, Motta! Não posso retornar a Araxá. Serei enxotada de lá como um cão sarnento!
MOTTA:
Beija, são ordens de D. João VI: tenho de retornar ao Rio de Janeiro. E
você sabe muito bem que não posso levá-la comigo. Sou um homem casado,
pai de muitos filhos... Não ficaria bem para um Ouvidor d’El Rei boatos
maldosos circulando pela Corte.
BEIJA:
E eu, como fico nessa história? Você me raptou aos 15 anos de idade,
matou o meu avô que era a única pessoa que eu tinha no mundo, me fez
perder o meu noivo que tanto amava, perder minhas amigas... Agora,
apenas dois anos depois você me abandona? O que será de mim?
MOTTA:
Sei muito bem o mal que te causei. Já pedi perdão uma centena de
vezes... Infelizmente pelo que já passou não posso fazer nada, não há
como voltar o tempo atrás... Mas estou tentando lhe dar uma
possibilidade de futuro. Você hoje é uma mulher rica, conhecida em toda a Capitania das Minas Gerais. Se souber administrar tudo que tem, terá uma vida tranquila por muitos e muito anos.
Pausa. O silêncio reina no ambiente por alguns instantes.
BEIJA (desafiando): Eu sei muito bem do que você tem medo! Seu medo é de me perder para o Príncipe Regente!
MOTTA (tentando desacreditá-la): Não seja pretensiosa, Beija...
BEIJA:
Já soube por muitas bocas que o Príncipe Regente, apesar de jovem, é um
tremendo mulherengo e certamente, como todos os homens que conheci até
hoje, não resistiria aos meus encantos... (provocando) É disso que Vossa
Excelência tem medo, não é, Ouvidor de El Rei?
MOTTA
(irritado): Beija, você é o diabo na figura de uma mulher! Você sabe
como irritar qualquer mortal! A gente fala, explica, conversa e quando
pensa que está tudo entendido, você destila o seu veneno! Você é como a
serpente do paraíso!
BEIJA: Pela sua ira julgo que estou certa! Seu medo é mesmo me perder para o Regente!
MOTTA:
É Beija, é sim! Apesar de, às vezes, ter vontade de lhe esganar com as
minhas próprias mãos, tamanha a ira que você me provoca, no fundo ainda
te amo. Sinto uma paixão descontrolada por você, que ainda me leva a
cometer loucuras... O tempo passa mas não consigo me livrar desse
sentimento. Parece desatino, parece feitiço, sei lá o quê...
BEIJA (doce,
implorando): Me leve para o Rio de Janeiro, Motta. Meu sonho é conhecer
o mar... Dizem que é tão lindo... Eu lhe prometo seguir todas as suas
ordens e não fazer nada que possa lhe desagradar. Vou me manter afastada
da sua família e levarei uma vida discreta, como qualquer súdito... Me
prometa pelo menos que vai pensar. Só isso já me deixaria muito feliz...
(e beija-o com ardência).
MOTTA: Está bem, Beija. Está bem. Prometo que vou pensar com carinho. O que você me pede que eu não faço?
________
* O cargo de “Ouvidor do Rei” seria equivalente hoje ao cargo de governador.
No capítulo anterior...
- Motta comunica seu retorno ao Rio de Janeiro
- Beija fica furiosa porque quer ir junto, mas o Ouvidor se recusa a levá-la
- Diante de sua insistência, Motta concorda em pensar no assunto
CAP. 2
No dia seguinte, Beija caminha com Padre Melo Franco (45 anos, magro, simpático), seu confessor, pelas minas de diamante.
BEIJA: Padre, o Motta ficou de pensar com carinho na minha ida para a Corte. E se ele ficou de pensar, tenho certeza que me levará com ele...
PADRE:
Beija, não se iluda... Não estou seguro de que sua ida para a Corte
seja o melhor para você... Veja bem: aqui nas Minas Gerais você é
conhecida, rica e famosa como a “moça do ouvidor”. Lá você será apenas
mais uma na multidão... Uma desconhecida...
BEIJA: Isso por pouco tempo, Padre. O senhor acha que serei uma desconhecida depois que conhecer o Príncipe Regente?
PADRE: Ah... Então é esse o seu objetivo, conhecer Dom Pedro...
BEIJA: Eu posso me tornar uma rainha... Já pensou: Beija, a rainha do Brasil?
PADRE: Filha, seja realista e menos ingênua: um nobre não se casa com os súditos. Nobres só se casam com outros nobres...
BEIJA (incrédula): nem se o Príncipe se apaixonar perdidamente por mim?
PADRE: Ainda que se apaixonasse seria praticamente impossível...
Após pequena pausa reflexiva, sentam-se num tronco caído à beira do caminho.
BEIJA (convicta): Ainda assim, quero ir para o Rio de Janeiro. Quero conhecer a Corte, os bailes, o mar... (sonhando) O Príncipe, os barões, os marqueses... (séria, voltando à realidade) Não é isso que eu faço aqui, me deitar com homens importantes e ricos em troca de ouro e jóias? Lá os homens são mais ricos e mais importantes...
PADRE:
Sim, Beija, mas você quis assim. O Ouvidor sempre a tratou como uma
esposa e sempre fez tudo para lhe agradar. Sempre lhe deu tudo do bom e
do melhor. Você se deita com outros homens para provocar a ira dele, não
por necessidade...
BEIJA
(rancorosa): O senhor não imagina o ódio que sinto daquele homem. A
minha vingança parece não ter fim. Nada que faço contra ele é suficiente
para retribuir todo o mal que ele me fez: me desonrou, matou o meu avô,
tirou meu noivo, jogou o arraial inteiro contra mim...
PADRE:
Minha filha, o perdão é um dom de Deus. Temos que perdoar aqueles que
nos causam o mal. Se formos pagar com a mesma moeda nós estaremos nos
nivelando com eles e cometendo as mesmas atrocidades. Esqueça tudo o que
passou e tente construir sua vida de agora em diante.
BEIJA: O senhor acha que é possível esquecer tudo, assim, de uma hora pra outra?
PADRE: Você não precisa esquecer, mas tome um novo rumo na sua vida, filha...
BEIJA: (empolgada) Então... A Corte seria um ótimo recomeço...
PADRE:
Não estou certo disso. Creio que sua melhor alternativa seria voltar
para São Domingos dos Arachás. Lá estão as suas raízes, a sua gente, o
seu noivo... Quem sabe vocês não reatam o noivado?
BEIJA: Conhecendo Antonio Sampaio como eu conheço, Padre, posso lhe garantir que isso é praticamente impossível...
PADRE: Ainda assim, Beija, suas chances de sucesso em Araxá são bem maiores que no Rio de Janeiro.
BEIJA:
Eu sempre ouvi seus conselhos, Padre, mas desta vez vou fazer o que
manda o meu coração. Está decidido: quero que venda estas minas e todas
as minhas outras terras, porque vou para o Rio de Janeiro.
Continua amanhã...
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